Líder do Invasão Zero na Bahia é ré por tentativa de homicídio

De Olho Nos Ruralistas - deolhonosruralistas.com.br - 21/02/2024
Ação do movimento culminou no assassinato da líder indígena Nega Pataxó; dez anos antes de presidi-lo, Renilda Souza e irmãos ameaçaram e lançaram carro contra família de um ex-funcionário; família concentra 8 mil hectares e é próxima do marqueteiro falecido Duda Mendonça

Por Carolina Bataier, Tonsk Fialho e Bruno Stankevicius Bassi

O dia era 18 de julho de 2013. João* estava na porta da sua casa, ao lado dos filhos e da esposa, quando viu dois carros se aproximando. A família conseguiu se jogar na sala segundos antes do motorista de um dos veículos acelerar e destruir a parede. Os meninos, de 9 e 12 anos, e a mulher saíram ilesos. João, em estado de pânico, precisou ser levado ao hospital. As fotos do buraco na parede e do laudo médico estão no processo de tentativa de homicídio, que corre na Vara Criminal de Wenceslau Guimarães (BA).

Os suspeitos do crime são Renilda Maria Vitória de Souza e seus irmãos, Ruy Carlos dos Santos Souza e Osvaldo José de Souza Junior - este último, o motorista do veículo Mercedes lançado contra a parede. Depois de tentar atingir a família, Osvaldo gritou: "Vou te matar". Renilda, que chegara ali minutos antes, gritando ofensas e segurando um pedaço de pau, entrou no carro. Ruy estava em outro veículo.

Conhecida como Dida Souza, Renilda é fundadora e presidente do Movimento Invasão Zero na Bahia e uma das principais expoentes nacionais do grupo, presente em oito estados. Filha do ex-deputado Osvaldo José de Souza e funcionária comissionada do Tribunal de Contas do Estado (TCE), Dida era a administradora do grupo de WhatsApp do Invasão Zero, usado por fazendeiros para organizar a expulsão forçada de uma retomada indígena no município de Pau Brasil (BA).

Realizada em 21 de janeiro, a ação armada resultou no assassinato da pajé Maria Fátima Muniz de Andrade - a Nega Pataxó. Seu irmão, o cacique Nailton Pataxó, foi baleado no abdômen e submetido a cirurgia.

No dia que marca um mês do crime, De Olho nos Ruralistas inaugura uma série de reportagens detalhando o histórico de conflitos e as conexões políticas do Movimento Invasão Zero, que vão de megaprodutores de cacau no Sul da Bahia aos lobistas da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) em Brasília, passando por um instituto de extrema direita apoiado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e pelo autoproclamado "príncipe herdeiro" do Brasil, Bertrand de Orleans e Bragança.

A face cacaueira de Dida Souza e dos diretores do Invasão Zero será tema da segunda reportagem da série, nesta quinta-feira (22).

LÍDER DO INVASÃO ZERO AMEAÇOU FAMÍLIA COM JAGUNÇOS ANTES DE ATROPELAMENTO
Ocorrida uma década antes do ataque à retomada Pataxó Hã Hã Hãe, a tentativa de homicídio contra João e sua família foi também motivada por um conflito fundiário. De acordo com as informações do processo, a vítima trabalhava na empresa Osvaldo Souza Empreendimentos Patrimoniais Ltda, pertencente ao pai de Dida, e vivia em uma casa cedida pelo empresário, em uma das fazendas dele, no município de Wenceslau Guimarães (BA).

"Tendo moradia em uma pequena casa residencial, da qual sempre teve a posse mansa e pacífica, inclusive com anuência do falecido Sr. Osvaldo", informa um trecho da notícia crime anexada ao processo acessado pelo De Olho nos Ruralistas.

Após a morte de Osvaldo, em junho de 2012, os filhos passaram a disputar as terras do pai. Em depoimento, João afirmou nunca ter sido informado sobre o desejo de Dida Souza e de seus irmãos em reaver as propriedades até a manhã do dia 18 de julho de 2013. Horas antes de lançar a Mercedes no muro da família, a futura líder do Invasão Zero esteve na casa das vítimas, acompanhada de três jagunços. O grupo soltou os cavalos de João e destruiu as baias onde ficavam os animais. Antes de ir embora, a agressora disse que voltaria.

"Toda essa situação causou desespero e medo a toda a família, que até aquele momento desconhecia qualquer motivo que justificasse aquela atitude da senhora Renilda", informa o documento.

Hoje, mais de dez anos depois, o processo está parado, à espera das próximas decisões da Justiça. A reportagem entrou em contato com o Ministério Público da Bahia, que acompanha o caso, mas não obteve resposta até o fechamento da edição. As vítimas não foram localizadas. De Olho nos Ruralistas também buscou contato junto aos representantes de Dida Souza, mas não obteve retorno.

DISPUTA ENTRE IRMÃOS VIROU CASO DE POLÍCIA
Renilda Maria Vitória de Souza pertence a uma tradicional família de latifundiários e produtores de cacau. A partir de dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o núcleo de pesquisas do De Olho nos Ruralistas identificou 37 propriedades rurais em nome da coordenadora do Invasão Zero e de seus familiares. Os imóveis somam 8.321,52 hectares, número equivalente à metade da área urbana de Salvador.

Advogada de formação, Dida é proprietária das Fazendas Bela Vista e Tararanga, nos municípios vizinhos de Wenceslau Guimarães e Gandu. Outras 21 propriedades estão registradas em nome dos pais Osvaldo José de Souza e Ceres dos Santos Lisboa, e dos irmãos Osvaldo José de Souza Junior, Ruy Carlos dos Santos Souza, Rodrigo Martins de Souza e Sara Costa Paixão. Quinze fazendas pertencem à empresa Osvaldo Souza Agropastoril Ltda, registrada no nome do patriarca da família e que tem Dida como sócia. As terras se estendem para outros quatro municípios baianos: Apuarema, Itamari, Ituberá e Nilo Peçanha.

O cacau faz parte da história da família. Ruy, irmão de Dida, já ocupou o cargo de presidente do Conselho Municipal do Cacau em Wenceslau Guimarães. Em 1985, o patriarca Osvaldo foi diplomado "Homem de Ouro do Cacau", título concedido pela Assembleia Legislativa da Bahia. Criado na década de 60, o reconhecimento era concedido aos grandes produtores de cacau do estado. Além de produtor rural, Osvaldo foi vereador em Nilo Peçanha e prefeito em Wenceslau Guimarães, municípios onde a família tem terras. Em 1987, foi eleito deputado estadual pelo Partido da Frente Liberal (PFL) de Antônio Carlos Magalhães, sendo reeleito por três vezes.

A morte de Osvaldo em 2012 deu início a uma batalha judicial entre os filhos, levando o nome da família para as páginas policiais da época. Fruto do segundo matrimônio do deputado baiano, Rodrigo Martins teria falsificado documentos para passar para o seu nome as fazendas do pai. Quando a farsa foi comprovada por peritos do Departamento de Polícia Técnica, Rodrigo se escondeu em uma das propriedades. Renilda pediu ajuda à Polícia Militar da Bahia, mas o irmão, apoiado por um grupo de homens armados, trocou tiros com os soldados. Ela chegou a ser agredida por Rodrigo e por um capanga.

De acordo com texto publicado no portal Política Livre, no centro da disputa estavam 36 mil hectares de terras divididos em fazendas de gado, cacau e seringa. O número é quatro vezes superior à área total registrada pela família junto ao Incra.

FAMÍLIA DE DIDA SOUZA SE CRUZA COM A DO MARQUETEIRO DUDA MENDONÇA
As páginas policiais e o envolvimento em conflitos fundiários são um ponto fora da curva na trajetória midiática de Dida Souza. Com ares de socialite, a advogada estampou seu sorriso em publicações do portal Alô Alô Bahia, dedicado a notícias de entretenimento e agenda cultural de Salvador. Em 2019, ela aparecia almoçando com amigas na filial soteropolitana do restaurante Fasano. No ano seguinte, uma nota detalhava a celebração de seu aniversário. No portal Michelle Marie, o destaque foi o registro de uma viagem ao Pará, ao lado do marqueteiro político Duda Mendonça e de sua esposa Aline Waxman Caetano.

Falecido em 2021, Mendonça foi o responsável pela campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, tendo ganhado projeção ao cunhar o slogan "Lulinha paz e amor", modernizando a imagem do petista. O publicitário trabalhou com outros nomes de peso da política brasileira, como Paulo Maluf, Marta Suplicy, Roseana Sarney e Siqueira Campos, além de ter coordenado a campanha do ex-primeiro ministro Pedro Santana Lopes, em Portugal. Em 2006, Mendonça foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República por envolvimento no esquema do "mensalão", mas foi absolvido em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Duda e Dida eram amigos pessoais. Em sua conta no Instagram, a líder do Invasão Zero presta várias homenagens ao publicitário que, além da política, se dedicava à pecuária e à criação de cavalos quarto de milha. "Hoje é a data do seu aniversário; data que você amava tanto e que, por isso, tenho maravilhosas lembranças", escreveu Dida em agosto de 2023. "Cada ano comemorávamos em um lugar diferente, desde a farra em Taipú até as comemorações em Las Vegas".

A relação ia além da amizade. O enteado de Duda Mendonça, Henrique Waxman Souza, é fruto da relação entre a viúva do marqueteiro, Aline Waxman, com Osvaldo José de Souza Junior, irmão de Dida e um dos envolvidos na tentativa de homicídio em Wenceslau Guimarães. De acordo com as informações do processo, às quais a reportagem teve acesso, era Osvaldo quem dirigia o veículo Mercedes que derrubou o muro da casa.

Ele o filho Henrique são sócios na empresa America Fruit Ltda, uma produtora de cacau com sede na Fazenda Pedra Dourada, em Wenceslau Guimarães. Além de sobrinho, Henrique Waxman Souza é afilhado de Dida.

DE SOCIALITE A LÍDER DE MILÍCIA RURAL
Até 2022, o perfil de Dida Souza no Instagram era dedicado quase inteiramente a exibir uma vida luxuosa, com passeios de barco, almoços em restaurantes badalados de Salvador e viagens à Europa. A partir das eleições daquele ano, a dolce vita deu lugar ao conteúdo político. Após uma sequência de postagens de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro, então candidato à reeleição, em 13 de novembro de 2022, ela publicou a imagem de uma bandeira do Brasil com a frase: "Aceitar uma derrota é para os fortes. Aceitar uma trapaça é para os covardes". Era o início de uma nova fase na vida de Dida.

Em um dos primeiros vídeos de caráter político publicados em sua rede social, no dia 18 de abril de 2023, a advogada diz: "Com a união de todos, nós vamos combater essa sigla chamada MST, que vem espalhando baderna e terror pelo país", referindo-se ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A postagem se referia ao ato de fundação do Movimento Invasão Zero, lançado durante evento na Assembleia Legislativa da Bahia.

Desde então, as redes de Dida tornaram-se um dos principais espaços de divulgação do grupo. No dia do assassinato da pajé Nega Pataxó, em 21 de janeiro, a presidente do Invasão Zero publicou um vídeo mostrando dezenas de carros estacionados num gramado. Ao redor deles, alguns homens caminhavam, outros se uniam em grupo. Na legenda, ela escreveu: "Aos corajosos agricultores que oportunamente estão se deslocando para impedir a invasão em Itapetinga, rogamos a Deus proteção".

Uma semana depois do assassinato da pajé Nega Pataxó, Dida publicou em seu perfil uma Cartilha Orientativa para Proteção de Propriedades. De acordo com a publicação, o objetivo é "orientar os produtores rurais de como agir em caso de suspeita ou confirmação de invasão de uma propriedade".

Entre as orientações, a cartilha indica aos produtores que entrem em contato direto com um dos administradores do Movimento Invasão Zero. "Esse contato deverá ser feito, inicialmente, no privado, para que as informações sejam organizadas, antes da mobilização do(s) grupo(s)". Na sequência, outra imagem da publicação informa que, a partir das informações fornecidas, o grupo irá se unir "em maior número de pessoas possíveis, de forma ordeira e pacífica para dialogar com os invasores".

Em novembro de 2023, ela coordenou o evento de lançamento da primeira subsede estadual do Instituto Harpia, na Bahia. Focado na defesa da propriedade privada e dos valores conservadores, o instituto tem Jair Bolsonaro como presidente de honra e é liderado pelo deputado Major Vitor Hugo (PL-GO), um dos principais interlocutores do Invasão Zero em Brasília. A conexão entre as duas organizações será tema de uma das próximas reportagem da série.

Foto principal (Reprodução/Instagram): presidente do Movimento Invasão Zero, Dida Souza, posa em ato de campanha pró-Bolsonaro

*Nome fictício. A reportagem buscou contato com as vítimas, mas não obteve retorno, optando por mantê-las em anonimato.

| Carolina Bataier é jornalista e escritora. |

|| Tonsk Fialho é pesquisador e repórter do De Olho nos Ruralistas. ||

||| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do observatório. |||


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