'Índio de iphone' e 'borracha nessa corja': discurso de ódio e fakes escancaram violência contra indígenas em SC

Lupa/UOL - https://lupa.uol.com.br - 17/11/2023
'Índio de iphone' e 'borracha nessa corja': discurso de ódio e fakes escancaram violência contra indígenas em SC

Carol Macário

17/11/2023

O cheiro podre de matéria orgânica em decomposição está impregnado na aldeia Plipatól, ainda parcialmente inundada, no Território Indígena (TI) Ibirama-La Klãnõ, na região do Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Lá vivem cerca de 3 mil pessoas das etnias xokleng, kaingang e guarani. Depois de um volume recorde de chuva, o governo estadual decidiu fechar as comportas de uma barragem localizada dentro da terra ancestral - para minimizar as cheias em municípios vizinhos, sete das dez aldeias da região ficaram alagadas em outubro. O episódio envolveu o uso de força policial contra os indígenas com spray de pimenta e balas de borracha. Dois indígenas foram baleados.

No começo de novembro, o nível do rio Hercílio (da bacia do rio Itajaí-Açu), que margeia a aldeia, começou a baixar. Sobraram o lodo e o mau cheiro dos restos de animais que morreram afogados. A água suja tem provocado diarreia nas crianças e nos adultos que estão vivendo desde o dia 8 de outubro em abrigos improvisados porque perderam suas casas.
O fechamento da Barragem Norte e a consequente inundação que destruiu moradias deixou dezenas de famílias indígenas em pânico diante da possibilidade de que a estrutura, sem manutenção há anos, rompesse e varresse o que sobrou do território. Para o povo xokleng, a decisão de fechar as comportas foi o episódio mais recente de um ciclo sem fim de violência e racismo pautado na desinformação secular de que os indígenas são "selvagens", "violentos" e não precisam de terra.

Nas redes sociais, comentários cheios de ódio sobre o episódio escancararam o preconceito e as informações falsas de que "índio é vagabundo" e que "índio tem iPhone e Hilux". "Uma das maiores mentiras que dizem por aí é a de que o 'índio' não precisa de terra, que 'índio' ganha tudo. É mentira. Hoje, dependemos de doações para sobreviver", diz Nicácio Mariano, liderança xokleng ligada ao cacique do território.

"A gente vê a reprodução de um modo de ver os indígenas como pessoas que não estão andando com o tempo, que não evoluem, que devem ficar sempre no cantinho, na aldeia, fechadas. Vemos a reprodução de um 'índio' muito estereotipado. Isso não é só com a gente, os xokleng, mas com todos os povos indígenas no Brasil. É uma tentativa de deixar a gente no passado, no esquecimento. Vemos como uma tentativa de nosso apagamento."
- Txulunh Gakran, integrante do movimento Juventude Xokleng

Desinformação secular e o genocídio dos xokleng

Na percepção de Txulunh Gakran, liderança feminina importante para a comunidade, o mito da selvageria segue sendo uma das principais desinformações contra os povos indígenas no Brasil, especialmente em Santa Catarina.

"As fake news sempre estiveram presentes em nossa vida. Desde que o estado começou a ser colonizado, criaram essa história de que os 'índios' são selvagens, são violentos, que matam pessoas, que violentam mulheres. Mas a história sempre mostrou que foi o contrário."
- Txulunh Gakran, integrante do movimento Juventude Xokleng

O povo La Klãnõ-Xokleng por pouco não foi totalmente exterminado em Santa Catarina. Em nome do "progresso", até o começo do século 20 os indígenas eram alvo de caçadas estimuladas e pagas pelo governo e empresas privadas (página 8) de colonização por serem considerados uma "ameaça à civilização" e aos colonos que chegavam da Europa.

Em 1914, os sobreviventes foram confinados em uma área determinada pelo recém-criado Serviço de Proteção aos Índios (SPI) - órgão que mais tarde se tornaria a Fundação Nacional do Índio (Funai). Tradicionalmente, ocupavam áreas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
A história do genocídio do povo xokleng mobilizou a comunidade científica internacional, envergonhou o Brasil e resultou no primeiro reconhecimento de um território indígena no país, em 1926. Mas, pouco mais de 100 anos depois que o extermínio incentivado do povo xokleng foi oficialmente interrompido, a violência se perpetua por meio do preconceito e da desinformação.

Em abril deste ano, lideranças de uma das aldeias do TI denunciaram à Agência Pública o clima de terror alimentado com ameaças de morte, agressões e racismo por parte da população de Rio do Oeste, cidade na região sudeste de Santa Catarina e vizinha ao território. Em setembro, uma semana depois de o STF ter rejeitado a tese do marco temporal, lideranças xokleng relataram ameaças de invasão e de conflito com armas.
O preconceito aparece não apenas por meio de agressões físicas. Na edição mais recente do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, com dados de 2022 e que foi divulgado em julho deste ano pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Santa Catarina foi o estado com maior número de desassistência na área da saúde no ano passado: 15 no total. Entre os casos identificados, estavam falta de água potável, saneamento básico e falta de assistência médica.

Crianças não escapam. Em maio de 2022, uma criança do povo xokleng de 6 anos foi espancada na cidade de José Boiteux, vizinha ao território indígena, e precisou esperar dez dias, em estado gravíssimo, para poder ser transferida para a UTI.

Em janeiro de 2018, o professor e líder indígena Marcondes Namblá Xokleng, de 38 anos, foi espancado com um bastão de madeira até a morte na cidade de Penha, litoral norte catarinense. O autor foi preso 12 dias depois e confessou o crime. Na época, o Cimi afirmou que o homicídio era fruto da intolerância e do racismo contra indígenas e que já vinha alertando sobre a "onda de intolerância" contra indígenas no litoral de Santa Catarina, "especialmente manifestada por autoridades municipais que não aceitam o fato de os indígenas frequentarem as praias".

Em 30 de dezembro de 2015, um bebê de dois anos do povo kaingang foi assassinado com uma facada enquanto era alimentado pela mãe em Imbituba, município do litoral sul catarinense.

"Estamos num estado que tem uma cultura racista muito forte. O preconceito contra indígenas é uma coisa que vem do passado e que segue se perpetuando. A questão da barragem em nosso território é um reflexo disso, de como o Estado enxerga a gente e como cria artifícios para conseguir o que é nosso", lamenta Txulunh Gakran.

A barragem e o marco temporal

O fechamento da Barragem Norte com uso de força policial por decisão do governo de Santa Catarina é um episódio que tem relação direta com o marco temporal para demarcação de terras indígenas.

Iniciada nos anos 1970, durante a Ditadura Militar, a construção da barragem foi realizada sem estudo de impacto nem licenciamento ambiental (página 6), ignorou a existência e a presença do povo xokleng na região do Alto Vale do Itajaí (SC) e alagou parte do seu território.

Diante das reivindicações dos xokleng - e embora a obra tenha sido feita em área demarcada -, em 2009 o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina entrou com uma ação possessória (defesa de posse de terra) contra a Funai e o povo xokleng de uma área sobreposta à Terra Indígena Ibirama-La Klanõ.

Na ocasião, o Estado argumentou que os indígenas não teriam direito ao território porque não moravam na região em 1988 - argumento baseado na chamada tese do marco temporal, segundo o qual povos originários só têm direito aos territórios que ocupavam (ou disputavam na justiça) no momento em que foi promulgada a Constituição, em outubro de 1988.

O processo chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ganhou repercussão geral porque poderia afetar as decisões sobre demarcações de todas as terras indígenas no país. A tese foi rejeitada em 21 de setembro pelo Supremo, que a considerou inconstitucional. No mesmo mês, o Congresso aprovou um projeto de lei favorável à tese - o trecho que se referia ao marco foi vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em outubro.

"Eu tinha 13 anos quando começaram a construir a barragem. Fizeram os mais velhos assinarem. Mas como aqui não se sabia muita coisa, assinaram com o dedo. E até hoje os filhos e os netos deles estão lutando contra essa obra", lembra Marlene Amendo Patté, 65 anos. "Eu vi eles assinarem, mas como é que eu ia dizer, 'não assina?'. Fizeram e estamos aqui até hoje sofrendo", lamenta a idosa.

A estrutura armazena 357 milhões de metros cúbicos de água. É uma das três barragens construídas na região catarinense do Vale do Itajaí para controle e contenção de enchentes. Além de ter forçado os indígenas a desocuparem o território que pertencia a eles, o lago de contenção inundou parte das terras mais planas e aptas para cultivo de alimentos.

"A barragem interferiu no nosso modo de viver, no modo de a gente socializar. Toda a nossa cultura de coletividade, de estar próximo um do outro, foi atravessada pela obra", diz Txulunh Gakran.

De acordo com o Instituto Socioambiental, até hoje os xokleng não foram indenizados pelos prejuízos causados pelas sucessivas inundações do reservatório. Desde que a obra começou (até hoje não foi totalmente concluída), a população indígena tem reivindicado, ano a ano, o atendimento a demandas estabelecidas nos acordos firmados e, segundo eles, nem sempre cumpridos.

Depois da última cheia de outubro, ampliada pelo alagamento em razão da abertura da barragem, por exemplo, moradores estavam alojados em barracas improvisadas com lonas ou refugiados num centro comunitário abandonado com parte do teto colapsado. Sem banheiro, sem água encanada e poucos mantimentos, as famílias contaram que dependiam de doações - que chegavam aos poucos e eram insuficientes para alimentar todo mundo. No dia que a reportagem da Lupa esteve na aldeia, em 8 de novembro, foi possível ver crianças comendo apenas arroz cozido.

Vale pontuar que o fechamento das comportas da barragem tinha sido acordado entre as lideranças do território e o governo mediante "a disponibilização de botes e outras medidas de segurança para que a comunidade indígena pudesse se proteger". Lideranças, no entanto, relataram que o acordo não foi cumprido.

O que diz o governo de SC

Em nota, o governo de Santa Catarina informou que, desde que o governador Jorginho Mello (PL) assumiu, em janeiro deste ano, "busca o diálogo para retomar as operações na Barragem Norte". Sobre o acordo relacionado à abertura das comportas no período de cheias, em outubro, disse que "cumpriu o acordo de suporte emergencial" e que "tem documentados os comprovantes de entrega de uma van de 15 lugares que já foi colocada à disposição da comunidade", que "foram entregues uma ambulância e medicamentos solicitados" e que, no dia 9 de outubro, foi liberada a "entrada da ajuda humanitária com cestas básicas e água potável para 969 famílias", além de um barco.

O governo também respondeu que a Defesa Civil iniciou a operação da barragem "por considerá-la segura e entender que sua operação ajudaria a reduzir os impactos da chuva". Segundo a Secretaria de Comunicação, cálculos da Defesa Civil Municipal da cidade de Blumenau mostraram que o fechamento ajudaria a reduzir entre 1m e 1,5m o nível do rio Itajaí-Açu na cidade - localizada a 106 quilômetros do reservatório.

Sobre a atuação violenta da Polícia Militar de Santa Catarina (PMSC) que resultou em indígenas feridos, justificou que "a previsão com base em episódios anteriores era de que uma pequena parcela descontente (...) poderia tentar resistir". Argumentou ainda que, ao chegar à barragem, "o Estado se deparou com um pequeno grupo de indígenas que tentava atear fogo na estrutura em que antes existia a sala de máquinas, já depredada ao longo dos anos, mas que é também o único ponto de acesso para operação das estruturas internas da barragem". Por fim, alegou que o comandante da PMSC disse que "um dos membros desse grupo fez um movimento de alcançar a arma de um dos policiais presentes" e que, por isso, "houve um confronto com um pequeno grupo de indígenas, e três tiveram ferimentos leves".

A Defesa Civil de Santa Catarina também foi procurada, mas não respondeu até a publicação da reportagem.

Combate à desinformação com a Juventude Xokleng

As plataformas digitais, amplamente usadas para reverberar desinformação e ódio, é na mesma medida um instrumento potente para fazer chegar informação proveniente dos povos indígenas para mais pessoas. Em 2019, um movimento formado por jovens xokleng passou a divulgar nas redes sociais informações sobre as tradições e histórias de seu povo. Com 1,9 mil seguidores no Facebook e 9,3 mil seguidores no Instagram até 15 de novembro, a Juventude Xokleng tem também denunciado abusos, racismo e a violência contra os indígenas.

Em outubro, quando a Barragem Norte no TI Ibirama-La Klãnõ foi fechada, a página virou referência para quem quisesse entender o que estava acontecendo na região a partir da perspectiva da população indígena.

Os cerca de 30 jovens que colaboram com o movimento fizeram uma cobertura em tempo real do episódio de violência envolvendo a polícia para fechar as comportas.

"Há um tempo que a gente trabalha com o empoderamento da juventude, em vários campos. Percebemos que as mídias sociais e tudo que compõe a esfera da comunicação estão presentes em nossas vidas. O que podemos fazer é nos formarmos nessas áreas para que possamos apresentar a nossa visão. Até então, a gente não tinha isso", diz Txulunh Gakran, do movimento Juventude Xokleng.

"Nunca tivemos a nossa voz em primeiro plano. Agora usamos as redes sociais para mostrar a nossa história, tudo que estamos fazendo e trabalhando. Porque sempre nos retratam de maneira estereotipada, nunca sobre a nossa vida de agora."
- Txulunh Gakran, integrante do movimento Juventude Xokleng

https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2023/11/17/indio-de-iphone-e-borracha-nessa-corja-discurso-de-odio-e-fakes-escancaram-violencia-contra-indigenas-em-sc
PIB:Sul

Áreas Protegidas Relacionadas

  • TI Ibirama-La Klãnõ
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.