Jovem se torna 1ª indígena do povo Puyanawa formada em História: 'Sem o Enem, não teria conseguido'

Terra -https://www.terra.com.br - 31/10/2023
Liliane Araújo Maia recebeu o sonhado diploma do ensino superior neste ano, pela Universidade Federal do Acre, e inspira outros indígenas
Marcela Coelho
31 out2023- 05h00
(atualizado às 08h43)

O ano de 2023 vai ter para sempre um lugar especial na memória e no coração de Liliane Araújo Maia, de 27 anos. Em julho, ela vestiu a beca de formatura e, acompanhada pelos seus pais, recebeu o tão sonhado primeiro diploma do ensino superior, pela Universidade Federal do Acre (UFAC). Mas ela ainda foi além: se tornou a primeira indígena formada em História - Bacharelado do povo Puyanawa.

Essas grandes conquistas, no entanto, só foram possíveis porque, anos atrás, ela fez as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e, com a nota obtida, conseguiu ser aprovada no curso de História da UFAC pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu). "O Enem era a única porta de entrada que eu tinha para estudar em uma universidade", afirma Liliane à reportagem do Terra.

Esse é o primeiro episódio da série de reportagens Onde o Enem me levou?, que conta a história de vários brasileiros que, a partir do exame, conquistaram marcas profissionais, pessoais e financeiras transformadoras. Ao todo são cinco episódios que serão publicados no Terra ao longo das próximas duas semanas. Acompanhe e se inspire nesses relatos.

Para chegar até aqui, a jovem teve uma longa trajetória. Ela passou por uma série de adversidades, teve que fazer escolhas, mas também viveu muitos momentos de alegrias com as pequenas vitórias que a deixavam mais perto do objetivo desejado.

Liliane nasceu em 1996 na Terra Indígena Puyanawa, localizada no município de Mâncio Lima, no Acre. Filha de Ederlandia Alves de Araújo, uma mulher indígena, e Claudiomar de Lima Maia, um homem branco, ela é a irmã mais velha dos sete irmãos. Para se casar, seus pais tiveram que enfrentar a família de seu pai, que era contrária à união por Ederlandia ser indígena.

Com apenas cinco anos, Liliane se mudou para Rio Branco, capital do Acre. Os pais foram em busca de mais oportunidades de emprego. Mesmo passado tanto tempo, ela ainda tem lembranças dessa viagem conturbada: "Foram sete dias de chão batido, a estrada não era asfaltada, o ônibus atolava na lama, não tinha restaurante no trajeto, tivemos que pegar balsa também".

Em Rio Branco, ela morou até os 10 anos de idade. No tempo em que ficaram por lá, seus pais se separaram. Liliane ficou com a mãe e, devido às dificuldades financeiras que Ederlandia passava, voltaram a viver na aldeia.

"Com meu povo, eu aprendi a nadar, a pescar, a raspar macaxeira para poder fazer farinha. Foi uma boa fase mesmo. E, além do português, eu estudava a língua materna. Nessa volta, eu conheci muitos costumes. A gente também cantava na língua indígena, se pintava, tomava banho de Igarapé [cursos de água estreitos e pouco profundos que correm pelo interior das matas]", lembra.
De volta para a cidade
Quando Liliane estava no fim do ensino fundamental, sua mãe decidiu novamente se mudar para Rio Branco. Nesse retorno, ela terminou os estudos na capital, virou adulta, começou a trabalhar em uma loja de sapatos e passou a morar sozinha quando sua mãe voltou mais uma vez para a aldeia.

Em seus trajetos pela cidade, a jovem sempre passava no entorno da UFAC e, em seu íntimo, já mentalizava o quanto desejava estudar ali. "O ônibus passava em frente da instituição de ensino e eu só pensava: 'eu quero muito estudar nessa universidade, como é grande e bonita, é a única federal do Acre'."

Foi assim que o seu sonho começou a se tornar realidade. Ao decidir que queria entrar na faculdade, Liliane passou a estudar para o Enem. "Já tinha três anos que eu tinha terminado o ensino médio, então eu estava um pouco distante. Trabalhava o dia todo, mas à noite tirava um tempinho para estudar. Estudei pouco porque não dava para conciliar muito. Fiz o Enem duas vezes. Na segunda vez, a nota foi boa e me inscrevi em História, na ampla concorrência do Sisu, e deu certo", conta.

"Quando eu vi o meu nome na lista, não acreditei. Fiquei muito feliz. Se não fosse o Enem, eu não teria conseguido entrar em uma universidade pública, gratuita e de qualidade. A gente vive com dificuldades, o Enem é o nosso caminho, é a nossa chance."

Ao fazer a sua matrícula, em 2017, outros impasses surgiram pelo caminho. Liliane não conseguiu diminuir a carga horária do trabalho para poder frequentar as aulas no período da tarde. Com isso, teve que fazer uma escolha: os estudos ou o emprego. Mesmo ainda sem saber o que faria depois, a jovem decidiu arriscar e correr atrás do seu sonho. Ela pediu demissão.

"Eu estava feliz porque ia fazer o que eu queria. Só que meu salário foi cortado. No primeiro momento, tive que morar de favor na casa de um conhecido. Foi aí que eu comecei a vender brigadeiros na UFAC, eu fazia, levava e vendia todos dentro da sala de aula. Vendia também geladinhos, bolos, lanches, fui me virando para conseguir ajudar financeiramente a pessoa com quem eu estava morando", recorda.

No segundo ano de faculdade, porém, as perspectivas mudaram. Ela conseguiu uma bolsa permanência da UFAC voltada para estudantes indígenas e teve a oportunidade de focar apenas nos estudos. O objetivo desses programas de bolsas é garantir que o estudante em condição de vulnerabilidade socioeconômica consiga se formar.

Na sala de aula, no entanto, Liliane passou por outras situações desafiadoras. "As pessoas perguntavam se eu era mesmo indígena. Falavam que eu não parecia porque eu pintava o cabelo", diz.

"Quando eu entrei na faculdade, era um universo novo, eu também tinha muita dificuldade de entender como as coisas funcionavam, porque na minha família ninguém tinha passado por isso, não tinha ninguém para me auxiliar. Eu não entendia como escrevia no portal do aluno, entregava trabalhos, por exemplo, coisas básicas. Quando eu aprendi, eu passei a ajudar outros indígenas que chegavam da aldeia. Eu pensei: 'não posso ter essa informação só para mim, preciso ajudar os outros', eu fiz esse movimento dentro da universidade."

Apesar dos obstáculos na trajetória, Liliane encontrou na História sua grande paixão. Dentro do curso, ela conseguiu inclusive estudar a história do seu povo. Sua monografia, intitulada Entre escrevivências e (Re)Existências - Um relato de Memória(S) e História(S) do Povo Puyanawa e defendida no ano passado, aborda sua própria trajetória, o processo de demarcação das terras do povo Puyanawa e a luta pela escola indígena.

"A História contribuiu para o meu crescimento pessoal e ainda para uma pesquisa voltada para o meu povo. Por meio da escrita, eu consegui eternizar muitas histórias."

Passos pós-formação
Atualmente, Liliane estuda as relações étnico-raciais brasileiras e indígenas em uma pós-graduação na mesma universidade e trabalha na Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas, no Acre. Ela também é bastante ativa nas redes sociais e aborda assuntos voltados às causas indígenas.

Depois de formada, ela visitou a aldeia em que morou e recebeu o carinho do seu povo. "Ficou todo mundo orgulhoso. Mesmo com as barreiras, viram que eu consegui e virei uma inspiração para outros indígenas."

O exemplo de Liliane já inspirou, inclusive, os irmãos dentro de casa. Com a nota obtida no Enem, uma das suas irmãs foi aprovada no curso de Engenharia Florestal pelo Sisu, também na UFAC. Um outro irmão vai fazer o exame este ano e pretende cursar Medicina.

"Me sinto feliz de ser a primeira indígena do povo Puyanawa a se formar em História - bacharelado. Eu sou apaixonada pelo meu povo, e quero contribuir ainda mais e com outros povos também. Tem histórias encantadoras para conhecer e quero muito ajudar como uma historiadora indígena.isa voltada para o meu povo. Por meio da escrita, eu consegui eternizar
muitas histórias."

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